Amazônia: cruzeiro com todo conforto e nenhum perrengue

A ideia de viajar pela Amazônia pode trazer à tona preocupações clássicas de quem é mais afeito ao asfalto do que à floresta. A principal delas talvez seja o pavor dos mosquitos, dentre uma generosa lista de perrengues presentes no imaginário do viajante que escolhe trocar a cidade pela selva. Essa visão pré-concebida cai por terra (ou por água, melhor dizendo) em um cruzeiro fluvial a bordo do Belo Shabono. Desde o fim de 2021, o barco navega o Rio Negro em viagens de charme, com conforto e sem perder o lado peculiar da visita a um dos ecossistemas mais importantes do mundo. Atividades na natureza e encontros com ribeirinhos e uma comunidade indígena fazem parte dos roteiros, que variam de uma a cinco noites (diárias a partir de R$ 1.604 por pessoa com pensão completa). Voltado exclusivamente a viagens de grupos privados, o barco exige mínimo de cinco passageiros, e no máximo 10, a cada saída de Manaus.

© Belo Shabono/Divulgação

As atividades

O cruzeiro fluvial a partir da capital do Amazonas segue em direção ao Arquipélago de Anavilhanas. À medida em que os sinais de urbanismo ficam para trás, a natureza assume todo o campo de visão. A câmera do smartphone até registra, mas não traduz em imagem aquilo que se sente.

Não é preciso nenhuma dose extra de coragem para se jogar nas atividades programadas conforme o número de dias de travessia. Em uma das paradas, pranchas de stand up paddle e caiaques estão à disposição de quem deseja cruzar a distância que separa o barco da Praia Grande, faixa de areia fina e branca que surge na beira do Rio Negro na época da seca, entre maio e setembro. Nela, é montado uma espécie de “beach club” com espreguiçadeira, guarda-sol e bebidas geladas para o conforto dos viajantes.

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O mergulho na água cor de chá mate é, ao mesmo tempo, excitante e assustador. Dá para sentir a sutil correnteza querendo que você volte a Manaus antes da hora. No rio que se une ao barrento Solimões para formar o grande Amazonas, os mosquitos não se proliferam por causa do pH ácido. Fora desse cenário, na mata, o uso de repelente é tão essencial como se você estivesse na paulista Ilhabela ou na baiana Trancoso. Protetor solar é igualmente indispensável. Hidratação, também.

É fato que nenhum turista escapa do clima quente e úmido, característico da Amazônia o ano todo. A roupa cola no corpo durante a trilha na floresta. E na visita à aldeia Cipiá você inveja muito a escassez de vestes dos indígenas. Mas a máxima concessão que o seu pudor de homem branco permite é receber na pele alva as pinturas típicas da comunidade. Sob a sombra da oca, homens, mulheres e crianças dançam ao som de instrumentos produzidos por eles mesmos, em um ritual de boas-vindas. À base de tintas naturais, telas com grafismos característicos de diferentes etnias ganham o status de obra de arte, com o valor de venda revertido inteiramente ao autor. Colares, anéis e outros itens de artesanato também podem ser adquiridos.

Diante do Lago Acajatuba, a comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro também está aberta à visitação, que serviu de cenário para a novela A Força do Querer, em 2017. Dos tempos da fictícia Parazinho ficaram o nome da trama de Glória Perez escrito na placa de um bar e um painel com fotos de globais na entrada da loja de artesanato.

O passeio pela vila serve também para conhecer iniciativas sustentáveis e ações de conservação da natureza local, como o trabalho de preservação de quelônios de água doce. Sob a supervisão do líder da comunidade, cada visitante é convidado a enterrar em um ninho cercado alguns ovos de tracajá, uma espécie de cágado com manchas amarelas na cabeça. Maneira encontrada pelo projeto para evitar a extinção da espécie, vítima de predadores naturais e vendida como iguaria para o consumo humano – o hábito ancestral é mantido em algumas partes da região Norte, apesar dos esforços de fiscalização e controle de órgãos ambientais.

A relação homem x natureza é um ponto sensível quando o assunto é o turismo na Amazônia. Há defensores de que a interação com animais se limite a vê-los em seu habitat, sem contato, e há quem ache que a interação seria uma forma de sensibilizar as pessoas para a preservação. A experiência com o boto cor de rosa é atividade presente em todos os programas do Belo Shabono, mas é sempre feita com orientação de um instrutor e consiste em ver os animais com uma máscara de mergulho e eventualmente acariciá-los.

O barco

A bordo do cruzeiro, a percepção da fauna e da flora é única por conta das características da embarcação. Construído todo em madeira, ao estilo regional, o Belo Shabono oferece ampla visão ao redor em seus dois pisos. Na parte baixa, além da mesa de refeições e da cabine de comando, ficam ainda três boxes com chuveiro quente de um lado e igual número de cabines com sanitários em frente, além de dois lavatórios externos e uma cozinha de apoio.

Todos os pratos servidos são preparados em um barco-restaurante, que, juntamente com um par de canoas motorizadas, formam o time de apoio e logística nas viagens. Com pensão completa, a jornada tem todas as refeições feitas a bordo. Baseado na culinária regional, o cardápio se funde a sabores de outras cozinhas, como se vê no cruzamento entre tambaqui, um dos típicos peixes amazônicos; arroz negro, originário da Ásia; e tartare de banana pacovan, versão tropical e vegana para essa criação de raízes bárbaras. Sucos naturais – entre eles o de taperebá (cajá, em outras partes do Brasil) – estão entre as opções de bebidas incluídas, bem como água e refrigerante. Das alcoólicas, só as cervejas da marca Cerpa não são pagas à parte. Uma adega portátil atende a quem não abre mão de um vinho ou espumante. E alguns coquetéis também podem ser preparados.

Duas escadas levam à parte de cima, onde durante o dia funciona uma grande área de convivência. Caixa de som, um baú com jogos de tabuleiro e uma pequena biblioteca garantem o entretenimento. O sinal de celular desaparece tão logo o barco deixa o porto, contribuindo para o fluxo de conversas entre os viajantes. Como parte da política de sustentabilidade do barco, o uso de plástico é zero. O algodão das redes de descanso é orgânico.

É uma das maneiras de se dormir no barco, que até tem uma única suíte fechada, com duas camas de solteiro e ar condicionado. Porém, uma das experiências mais interessantes é pernoitar na parte superior, ao ar livre, onde a maioria dorme. Após o jantar, a tripulação transforma os sofás do lounge em confortáveis camas, envolvidas por lençóis egípcios de 300 fios imaculadamente brancos e edredons. As camas ficam lado a lado, sem divisórias. Um glamping flutuante sobre as águas do Rio Negro. 

Quando o motor do barco é desligado e a última luz se apaga, estrelas se avolumam na mais completa escuridão. Sons de sapos e aves são detectáveis até mesmo para gente da cidade grande. Por toda a madrugada, a respiração dos botos ao redor do barco não cessa. Pulsão de vida que parece sintetizar uma viagem guiada por todos os sentidos.

Analista de Sistema por formação, empresário no ramo de equipamentos outdoor, expectador das belezas naturais na fauna e flora no Brasil e positivista pela Equidade numa sociedade relativista.

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